O Beijo (Elsa Moreno)

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O Beijo de Gustav Klint (fragmento) Eu acho que os beijos são dados na boca porque é onde brotam as palavras. Se eu te beijasses a ponta dos dedos, estaria buscando uma carícia; se te beijasse a sola do sapato, estaria buscando um caminho. Se te beijasse as pálpebras enquanto dormes, estaria pedindo permissão para entrar nos teus sonhos, mas estou te beijando os lábios, porque quero ouvir minhas palavras saírem de ti, outra vez. Se te beijasse a planta dos pés, buscaria um passo em falso. Se te beijasse a parte interna do cotovelo, buscaria teus esconderijos. Se te beijasse a sombra, não saberia o que busco, mas estaria tão perto. Se te buscasse essa noite, beijaria cada estranho até te encontrar. Outra vez. Se eu te beijasse, seria como algo escorregadio sobre uma tela de carne que transborda e se espalha pelas vigas da minha casa. Subiria escorregadia por um muro, separando a pele da carne que se injeta em uma estrutura impessoal chamada nome. Estaria consumida antes mesmo de abrir ...

RUA DA PALAVRA (Fabrício Carpinejar)



O marido bate na mulher quando não tem mais palavras.

A mãe bate no filho quando não tem mais palavras.

O motorista sai do carro para brigar quando não tem mais palavras.

Manifestantes invadem lojas e depredam a cidade quando não tem mais palavras.

A palavra é o último reduto da sensibilidade. A fronteira derradeira.

Quem perde a palavra perde o respeito.

Quem perde a palavra perde o silêncio.

Quem perde a palavra perde o direito de protestar.

Quem perde a palavra perde a solidão, o lugar para voltar.

Quem perde a palavra perde a causa, perde o fôlego, perde a justiça.

Perde-se definitivamente.

A palavra é contundência. Depois dela, só vem a crueldade, a truculência, a covardia.

A palavra é firmeza. Depois dela, só vem medo e desconfiança.

A palavra é ouvinte. Depois dela, a memória desaparece.

A palavra é o rosto da voz, essa digital do vento. Depois dela, não restam traços, não resta tinta.

A palavra é responsabilidade, é decisão, é destino. Depois dela, o anonimato é inconsequente e criminoso.

A palavra é fé. Depois dela, seja o que Deus quiser.

A palavra é paz de estar com a verdade.  Depois dela, vem o exagero, a distorção, a mentira.

Abdicar da palavra é entregá-la para os sinônimos errados, para as pessoas erradas.

A palavra é o quintal derramado na rua. Depois dela, as vitrines são becos.

A palavra é ter espaço para frente e para trás. Já a violência sem palavras é um avião que não recua, que não dá ré, que somente avança ao desastre.

A palavra é tempo oferecido. Tempo de justificar. Tempo de convencer. Tempo de explicar as escolhas.

Sem palavra, o tempo é ruína, o tempo é explosão, o tempo é avareza.

A palavra é confiança da resposta. Depois dela, somos animais. Só quebramos para mostrar força, só destruímos porque não entendemos o mundo.

A palavra é generosidade. Depois dela, só vem a soberba, a arrogância, o preconceito.

Palavra é vidro. Tem que se preservar inteira para não cortar.


Crônica publicada no site vida breve
Colunista de quarta-feira

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