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Mostrando postagens de fevereiro, 2022

Das Vantagens de Ser Bobo (Clarice Lispector)

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  O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar no mundo. O bobo é capaz de ficar sentado, quase sem se mexer por duas horas. Se perguntando por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando." Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a ideia. O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não veem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os veem como simples pessoas humanas. O bobo ganha liberdade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski. Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea o

Minha Pátria (Lêdo Ivo)

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Minha pátria não é a língua portuguesa. Nenhuma língua é a pátria. Minha pátria é a terra mole e peganhenta onde nasci e o vento que sopra em Maceió. São os caranguejos que correm na lama dos mangues e o oceano cujas ondas continuam molhando os meus pés quando sonho. Minha pátria são os morcegos suspensos no forro das igrejas carcomidas, os loucos que dançam ao entardecer no hospício junto ao mar, e o céu encurvado pelas constelações. Minha pátria são os apitos dos navios e o farol no alto da colina. Minha pátria é a mão do mendigo na manhã radiosa. São os estaleiros apodrecidos e os cemitérios marinhos onde os meus ancestrais tuberculosos e impaludados não param de tossir e tremer nas noites frias e o cheiro de açúcar nos armazéns portuários e as tainhas que se debatem nas redes dos pescadores e as résteas de cebola enrodilhadas na treva e a chuva que cai sobre os currais de peixe. A língua de que me utilizo não é e nunca foi a minha pátria. Nenhuma língua enganosa é a pátria. Ela ser

A Fábula da Cidade (Lêdo Ivo)

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Uma casa é muito pouco para um homem; sua verdadeira casa é a cidade. E os homens não amam as cidades que os humilham e sufocam, mas aquelas que parecem amoldadas às suas necessidades e desejos, humanizadas e oferecidas – uma cidade deve ter a medida do homem. É possível que, pouco a pouco, os lugares cordiais da cidade estejam desaparecendo, desfigurados pelo progresso e pela técnica, tornados monstruosos pela conspiração dos elementos que obrigam as criaturas a viver como se estivessem lutando, jungidas a um certo número de rituais que as impedem de parar no meio de uma calçada para ver uma criança ou as levam a atravessar uma rua como se estivessem fugindo da morte. Em cidades assim, a criatura humana pouco ou nada vale, porque não existe entre ela e a paisagem a harmonia necessária, que torna a vida uma coisa digna. E o habitante, escravizado pelo monstro, vai-se repetindo diariamente, correndo para as filas dos alimentos, dos transportes, do trabalho e das diversões, proibido de f

A Partícula (Lêdo Ivo)

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  Nada sei sobre mim, quem sou ou de onde vim. Não sei para onde vou quando me for para onde. Não sei se esse ir me expõe ou se esse ir me esconde. Sei apenas que o sol clareia meu jardim onde uma lagartixa me separa de mim. Ignoro quem é este que diz ou é ser eu. E já que nada sou, nada tenho de meu, e nem mesmo de mim, como ser um pronome, essa ínfima partícula que de si e dos outros tem tanta sede e fome e em lenta combustão se queima e se consome? Nem mesmo a vida resta quando a gente regressa do passeio à floresta. Tudo na vida some. E o vento sopra e leva as letras do meu nome.