O Beijo (Elsa Moreno)

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O Beijo de Gustav Klint (fragmento) Eu acho que os beijos são dados na boca porque é onde brotam as palavras. Se eu te beijasses a ponta dos dedos, estaria buscando uma carícia; se te beijasse a sola do sapato, estaria buscando um caminho. Se te beijasse as pálpebras enquanto dormes, estaria pedindo permissão para entrar nos teus sonhos, mas estou te beijando os lábios, porque quero ouvir minhas palavras saírem de ti, outra vez. Se te beijasse a planta dos pés, buscaria um passo em falso. Se te beijasse a parte interna do cotovelo, buscaria teus esconderijos. Se te beijasse a sombra, não saberia o que busco, mas estaria tão perto. Se te buscasse essa noite, beijaria cada estranho até te encontrar. Outra vez. Se eu te beijasse, seria como algo escorregadio sobre uma tela de carne que transborda e se espalha pelas vigas da minha casa. Subiria escorregadia por um muro, separando a pele da carne que se injeta em uma estrutura impessoal chamada nome. Estaria consumida antes mesmo de abrir ...

A Fábula da Cidade (Lêdo Ivo)



Uma casa é muito pouco para um homem; sua verdadeira casa é a cidade. E os homens não amam as cidades que os humilham e sufocam, mas aquelas que parecem amoldadas às suas necessidades e desejos, humanizadas e oferecidas – uma cidade deve ter a medida do homem.

É possível que, pouco a pouco, os lugares cordiais da cidade estejam desaparecendo, desfigurados pelo progresso e pela técnica, tornados monstruosos pela conspiração dos elementos que obrigam as criaturas a viver como se estivessem lutando, jungidas a um certo número de rituais que as impedem de parar no meio de uma calçada para ver uma criança ou as levam a atravessar uma rua como se estivessem fugindo da morte.

Em cidades assim, a criatura humana pouco ou nada vale, porque não existe entre ela e a paisagem a harmonia necessária, que torna a vida uma coisa digna. E o habitante, escravizado pelo monstro, vai-se repetindo diariamente, correndo para as filas dos alimentos, dos transportes, do trabalho e das diversões, proibido de fazer algo que lhe dê a certeza da própria existência.

Não será excessivo dizer que o Rio está correndo o perigo de incluir-se no número das cidades desumanizadas, devoradas pela noção da pressa e do combate, sem rostos que iluminem em sorrisos e lugares que convidem à permanência.

Mal os seus habitantes podem tomar cafezinho e conversar sentados; já não se pode passear nem sorrir nem sonhar, e as pessoas andam como se isso fosse um castigo, uma escravidão que as leva a imaginar o refúgio das casas onde as tardes de sábado e os domingos as insulam, num temor de visitas que escamoteiam o descanso e a intimidade familiar. E há mesmo gente que transfere os sonhos para a velhice, quando a aposentadoria, triunfante da morte, facultar dias inteiros numa casa de subúrbio, criando canários, decifrando palavras cruzadas, sonhando para jogar no bicho, num mister que justifique a existência. E outras pessoas há que esperam que o dia em que poderão fugir da cidade de arranha-céus inamistosos, de atmosferas sufocantes, de censuras e exigências, humilhações e ameaças, para regressar aos lugares de onde vieram, iludidas por esse mito mundial das grandes cidades. E ainda existem as que, durante anos e anos, compram terrenos a prestações ou juntam dinheiro, à espera do dia em que se plantarão para sempre num lugar imaginário, sem base física, naquele sítio onde cada criatura é um Robinson atento às brisas e delícias de sua ilha, ou o síndico ciumento de um paraíso perdido.

Para que se ame uma cidade, é preciso que ela se amolde à imagem e semelhança dos seus munícipes, possua a dimensão das criaturas humanas. Isso não quer dizer que as cidades devam ser pequenas; significa apenas que, nas mudanças e transfigurações, elas crescerão pensando naqueles que as habitam e completam, e as tornam vivas. Pois o homem é para a cidade como o sangue para o corpo – fora disso, dessa harmoniosa circulação, há apenas cadáveres e ruínas.

O habitante deve sentir-se livre e solidário, e não um guerreiro sozinho, um terrorista em silêncio. Deve encontrar na paisagem os motivos que o entranham à vida e ao tempo. E ele não quer a paisagem dos turistas, onde se consegue a beleza infensa dos postais monumentalizados; reclama somente os lugares que lhe estimulem a fome de viver, sonegando-o aos cansaços e desencantos. Em termos de subúrbio, ele aspira ao bar debaixo de árvores, com cervejinha gelada e tira-gosto, à praça com play-ground para crianças, à retreta coroada de valsas.

Suprimidas as relações entre o habitante e seu panorama, tornada incomunicável a paisagem, indiferente a cidade à fome de simpatia que faz alguém preferir uma rua a outra, um bonde a um ônibus, nada há mais que fazer senão alimentar-se a criatura de nostalgia e guardar no fundo do coração a imagem da cidade comunicante, o reino da comunhão humana onde se poderia dizer “bom dia” com a convicção de quem sabe o que isso significa.

E esse risco está correndo o Rio, cidade viva e cordial. Um carioca dos velhos tempos ia andando pela avenida, esbarrou num cidadão que vinha em sentido contrário e pediu desculpas. O outro, que estava transbordante de pressa, indignou-se:

– O senhor não tem o que fazer? Esbarra na gente e ainda se vira para pedir desculpas?

Era a fábula da cidade correndo para a desumanização.

(IVO, Lêdo. O navio adormecido no bosque. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades/INL, 1977).

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