Um Amor (Emanuel Galvão)

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              Alguém já me havia dito que a vida é bem representada pelo aparelho que fica ao lado do leito dos pacienñtes, principalmente os da UTI. Aquele que faz um sobe-desce e determina o ritmo do coração, um gráfico para dizer a quantas anda nosso batimento cardíaco.  A vida tem seus altos e baixos, vejam, suas árduas subidas e os santos ajudando ladeira a baixo, como diz o ditado.            Naquele aparelho o que não se quer é uma linha reta, horizontal a sinalizar que descansamos. E na batalha da vida, pela vida e com a vida, os amores. Esses que também tem aclives e declives e podem ser difíceis para alguns, como estas palavras. Afinal, a vida não é para amadores. E eu direi: a vida é para amantes. Esses que de conversa em conversa, vão alimentado de saudades um relacionamento, esses temperados com sorrisos, carinhos e gentilezas.            São esses amores silenciosos, com menos boca e mais ouvidos que conquistam a eternidade. Saber ouvir é uma arte, saber ouvir e sorrir  é

Dois Dedos de Prosa (Marla de Queiroz)



Tá vendo aquele moço ali, dona? É meu homem.Ninguém tem mais intimidade com o mato que ele.Ninguém tem mais intimidade com o mar que ele.Ninguém passeia em qualquer canto solitário dessa natureza de meu Deus com tanta tranquilidade.Nem parece que foi parido de um ventre, parece que brotou da terra. Depois dessas florestas e de todas essas águas que ele conhece, o lugar que ele mais prefere é meu corpo.Nossa querência é das enormes.Ele com essa cara de bravo, ninguém desconfia, que macho mais doce.Mas eu sei que nessa pele queimada de sol tem mar demais e uma fome escondida entre nossas quatro paredes, entre nossas pedras na cachoeira, entre nossas pausas pra comer o peixe que ele pescou e assou.Eu esperando todo o tempo, cuidando da casa, lavando as vasilhas, um pé apoiado no tornozelo, mania que tenho.Ele sempre chega por trás, tentando não fazer barulho, mas eu sinto antes e finjo que não percebi.Ele gosta de achar que tem o dom dessa surpresa.



Esse moço, dona, já me deu trabalho. Foi difícil domar, cavalo doido solto procurando rapariga pra montar sem sela.Eu tive que quase não perdoar a primeira safadeza dele, se engraçando todo com a branquela azeda da rua da frente. Eu me fiz de besta.Mas depois que ele já tava bem lambuzado do assanhamento, tranquei as coisas dele do lado de fora da casa pra nunca mais abrir a porta. Deixei chorar, levar banana da terra pra mim, joguei tudo pros cachorros. Joguei fora até as presilhas que eu queria tanto e ele me deu pra eu usar nas festas. Eu tava machucada, dona, tava atarantada demais com aquela traição.

Pois aquele moço teve que chorar na minha porta, tava embebedado, é fato, mas parecia menino maltrapilho, cinco dias pelos bares, nem na casa do amigo ele não voltava mais.Banho só de mar.E a mesma roupa encardida das andanças.Rondando minha casa, chamando meu nome, dizendo palavras de amor, todo arrependido. Deixei ele sofrer mais de duas luas inteiras, porque eu gostava dele,dona, mas meu coração, quando ouvia aquele choramingar arrependido na minha janela, sentia era uma sapituca de raiva que eu me contorcia toda pra não jogar a água fervida do banho todinha nele.Quase costurei o nome da azeda que ele se engraçou na boca de um sapo, mas depois tive um esclarecimento na minha razão: que mal não se faz nem se deseja pra ninguém_ volta em dobro, já me dizia meu avô, Deus o tenha.

Foi que um dia, no forró lá no galpão de palha de seu Benevides, eu tava toda enfeitada na minha sede de vingança de fazer o mesmo, na frente dele, da cidade inteira. Pra magoar bem pisado aquele coração sem jeito. E teve uma hora, tocou aquela música de quando a gente namorou pela primeira vez. Aí me alembrei dele cantando pra mim, cara de menino levado,falando que eu era a morena mais bonita da festa, eu toda acreditada. Mas a lábia dele já era famosa, dona. A mulherada toda se enfileirava pra ser a próxima das aventuras.E foi aí que eu ia aproveitar pra dançar com aquele João Alves, da loja de ferramentas, que já me queria desde muito tempo.E vi meu homem, pensei que ia puxar briga, mas não: ele me olhou com uma tristeza, uma tristeza tão escura. Nunca vi um olhar tão adoecido, tão lamentoso.Parecendo que o mar inteiro sangrava.Só dele imaginar que eu ia me abraçar com o João naquela música que era tão nossa, dava pra ver o peito dele se arrebentando por dentro naquela olhada firme que ele me deu. Tive pena, não, dona.Tive foi o meu amor voltando, eu querendo cuidar pra ele nunca mais me olhar assim.Daquela dor que eu vi nele, nem gosto de alembrar.

Pois esse homem é tão meu agora, dona, que até enjoa, às vezes.Faz de tudo e mais um pouco pra eu não brigar de jeito nenhum.Até me ajuda com as coisas de casa. Eu já tive só mais um namorado, que foi antes dele.Um violeiro que me encantou pela voz, quando a gente acendia as fogueiras e ele era o centro das atenções cantando as canções sertanejas que eu mais gostava.Mas me entregar mesmo, de não resistir a essas fomes da carne, foi só com meu homem. Que até hoje ele ciúma desse meu primeiro. Disse que vai aprender a tocar violão pro outro não ter qualidade nenhuma que ele não tenha.Eu fico é rindo dessas bestagens.Mas no fundo eu gosto dele achar que nunca vai me conquistar direito, por inteiro, senão a coisa vai ficando abandonada, sabe, dona?Olha ele vindo aí, todo faceiro...deixa eu me aprumar, dona...Tenho que me ajeitar. Hoje é noite de lua cheia em nossa casa...
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*Livro QUANDO AS PALAVRAS SE ABRAÇAM, página 101. Marla de Queiroz










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