Um Amor (Emanuel Galvão)

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              Alguém já me havia dito que a vida é bem representada pelo aparelho que fica ao lado do leito dos pacientes, principalmente os da UTI. Aquele que faz um sobe-desce e determina o ritmo do coração, um gráfico para dizer a quantas anda nosso batimento cardíaco.  A vida tem seus altos e baixos, vejam, suas árduas subidas e os santos ajudando ladeira a baixo, como diz o ditado.            Naquele aparelho o que não se quer é uma linha reta, horizontal a sinalizar que descansamos. E na batalha da vida, pela vida e com a vida, os amores. Esses que também tem aclives e declives e podem ser difíceis para alguns, como estas palavras. Afinal, a vida não é para amadores. E eu direi: a vida é para amantes. Esses que de conversa em conversa, vão alimentado de saudades um relacionamento, esses temperados com sorrisos, carinhos e gentilezas.            São esses amores silenciosos, com menos boca e mais ouvidos que conquistam a eternidade. Saber ouvir é uma arte, saber ouvir e sorrir  é

DOADOR FRUSTRADO (*) (JAC das Alagoas)




Eu tinha um grande desejo
que já virou frustração,
queria poder doar
os rins, os ossos, o pulmão,
para salvar outra vida
dava até o coração.

Mas sou mesmo negação
de mim nada se aproveita,
hepatite e convulsão,
até sarampo e maleita,
cortaram esse meu desejo,
isso pra mim foi desfeita.


Só pode ser coisa feita
pra querer me atrapalhar,
tô velho, isso é verdade,
ninguém vai valorizar,
mas olhando direitinho
tem coisa pra aproveitar.

O doutor pra me zangar,
danou-se a dizer besteira,
me destripando a barriga,
como se fosse na feira,
por pouco, por muito pouco,
não quebrei-lhe a focinheira.

Ele na sua cadeira,
rodando que nem peru,
dizendo em tom safado,
com cara de cururu:
- “Nada seu serve pra nada,
só pra criar tapuru
”,

Eu, pra lá de jururu,
pedi a Nossa Senhora
que me desse mais controle,
exato naquela hora,
com o sangue já fervendo,
qualquer um se apavora.


- Vou lhe dizer sem demora,
disse o doutorzinho safado,
seus pulmões parecem um fole,
de usar lá no roçado,
quando sopram sai fumaça,
é ronco pra todo lado.

- O fígado tá inchado
de beber tanta cachaça,
coração batendo o pino,
pra completar a desgraça,
barriga destemperada,
a vista de longe embaça.

- Na cabeça uma cabaça
onde nada tem mais jeito,
o juízo derreteu,
a cara tem mil defeito,
na boca só tem um dente
perdeu o olho direito.

Diante desse preceito,
daquela triste figura
falando tão mal de mim,
eu fiquei de vista escura
só pensando na vingança,
pois só acha quem procura.

Passei a mão na cintura
pra pegar minha faquinha,
ía cortar o doutor
que nem se faz com galinha,
dava as tripas pros cachorros,
misturado com farinha.

Mas pra muita sorte minha,
a Santa me protegeu,
esfriou minha cabeça,
na hora me socorreu,
bati a porta da sala
que todo prédio tremeu.


O doutor se escafedeu
com medo da minha ira,
hoje nem olha pra mim,
quando me avista se vira,
pois sabe que qualquer dia,
dou-lhe uma surra de embira.

Pinto comigo não tira,
exijo muito respeito,
eu posso ser um caipira,
mas faço tudo bem feito,
Inda quebro a cara dele
pra ele falar direito.

O sujeito sem conceito
já está arrependido,
descobri os podres dele,
desde quando era marido
duma mulher assanhada,
que quebrou-lhe os possuído.

Sentiu dor sem ter parido,
da pesada que levou,
pegou lá no entrepernas,
com certeza que capou,
porque nunca mais foi homem,
da fruta jamais provou. 

Se você nunca pensou
ajudar qualquer irmão,
que está morrendo por falta
dum saudável coração,
só dependendo de gente
que tenha grande visão.

Pra quem morre repentino,
já fica tudo acertado,
não deixa nenhum remorso,
quando o bem for praticado,
ganha o céu por merecido,
Deus lhe dá muito obrigado.

Deixe tudo escriturado,
dizendo o que vai doar,
evitando confusão,
na hora de transplantar,
não faça como o compadre
que se esqueceu de avisar.

Quando o doutor foi falar
com a mulher do finado
o que queria tirar,
para alguém necessitado,
ela gritou: - Isso não!
Chico não vai ser capado.

Foi um fuzuê danado,
o doutor ficou nervoso,
a viúva disse: - Arreda,
larga o pedaço gostoso,
isso já me serviu muito,
não seja ganancioso.


- Sei que já foi precioso,
agora pra nada serve,
a senhora tire a mão
pra que seus dedos conserve,
eu já vou meter a faca,
vai ser um serviço breve.

- Sei que o senhor não se atreve
de levar o “cacho” inteiro
desmoralizando o homem
que foi bom raparigueiro,
como vai chegar no céu,
sem levar o seu morteiro?

- O seu Chico Carpinteiro,
disse o doutor suplicante,
fez promessa de doar
seu instrumento picante
pro seu amigo Astrogildo,
que anda periclitante.

O rolo não foi avante,
pois a polícia chegou
só pra ver o documento
onde o finando assinou,
o doutor não mostrou nada,
logo a briga terminou.



O defunto se enterrou
levando seu instrumento,
o amigo ficou triste,
quase teve um passamento,
se sonhava ficar novo,
não conseguiu seu intento.

Pra não passar mau momento,
Astrogildo se mudou,
com medo dos comentários
do que o doutor contou,
foi morar muito distante
e nunca mais retornou.

Se você bem me escutou,
evite essa confusão,
faça tudo direitinho,
fale até com escrivão,
registre sua vontade,
mostre seu bom coração.

    FIM

     (*) Cordel publicado em Salvador - BA, em maio/2010, sob pseudônimoJac das Alagoas, trazendo na capa uma xilogravura original do artesão Luís Natividade.

*veja mais do autor aqui:

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